domingo, 6 de setembro de 2009

O milagre de Ana Filipa

Ana Filipa, de seis anos, está viva por uma sucessão de acasos. Os médicos não hesitam em usar a palavra "milagre". Na manhã de 15 de Julho, quando brincava na escola, em Évora, teve um colapso e perdeu os sentidos. Os monitores que a socorreram julgaram que tinha sofrido um ataque epiléptico.Ninguém podia imaginar que o desmaio havia sido causado por uma ruptura da artéria aorta. É que em Portugal nunca houve casos semelhantes em crianças tão novas. São tão raros que, na literatura médica, só há registo de dois em todo o mundo, operados com sucesso (ver caixa abaixo).É mais habitual em pessoas idosas, com problemas de hipertensão, como Albert Einstein, que morreu aos 76 anos. Quase 90% dos pacientes não chegam sequer ao hospital. Ana Filipa aguentou-se durante várias horas até ser operada. O rápido diagnóstico feito no Hospital de Évora pela equipa de pediatras e cardiologistas foi o primeiro passo para o salvamento da rapariga alentejana. "Contei aos médicos que ela tinha sido sujeita a um cateterismo cardíaco com um ano de idade. Tem a artéria aorta dilatada desde que nasceu", conta a mãe, Ângela Janeiro, que esteve ao lado da filha desde as 10h30 da manhã, altura em que lhe telefonaram da escola. "Se eles não tivessem acertado logo, ela não teria sobrevivido." A empregada de balcão lembra que os médicos contactaram de imediato o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide. "Por sorte, o bloco operatório, normalmente sem vagas, naquela tarde estava disponível. E era fácil reunir a equipa de cirurgiões", diz uma fonte do hospital. Todos sabiam que era uma corrida contra o tempo e que qualquer erro poderia ser fatal. "Ainda se pensou na hipótese de a transportar de helicóptero mas alguém lembrou que a trepidação da aeronave podia ser prejudicial para a criança", recorda Ângela Janeiro. O hospital, os bombeiros e a GNR de Évora coordenaram-se para levar Ana Filipa de ambulância até aos arredores de Lisboa. Rodeada de uma escolta policial para não haver carros a atrapalhar. No tempo recorde de 45 minutos, a menina alentejana saiu de Évora e chegou aos cuidados intensivos do hospital de Carnaxide. E pronta para ser operada. Eram 16h30, ainda assim seis horas após a ruptura na principal artéria do coração. "Estávamos muito cépticos. Achávamos que ela não chegaria cá com vida", confessa um cardiologista de Carnaxide. A cirurgia, liderada por Miguel Abecassis, embora complexa, por ser rara em pacientes desta idade e envolver a manipulação dos tecidos numa zona muito delicada, foi um sucesso. "Ela é uma sobrevivente. É um caso que não se volta a repetir", diz o mesmo especialista.Ana Filipa teve sorte porque a aorta se rompeu na parte de trás, onde se situa a artéria pulmonar que fez de tampão, contendo a hemorragia: "Se a aorta se tivesse rompido à frente o sangue acumulava-se em redor do coração e ela morria subitamente". Se tivesse sofrido este colapso durante a noite, talvez não voltasse a acordar.

Um mês depois do dia mais longo da vida dos Janeiro, a família esforça-se para que a rotina se instale de novo em casa. Colada em frente ao ecrã do computador, Ana Filipa comanda um pinguim comilão que tenta salvar a namorada Penny das garras do inimigo Nolok. Tecla furiosamente para conseguir subir de nível do jogo Super Tux, sob o olhar embevecido dos pais, Ângela e Martinho: "Tens de fugir desses. Salta, agora. Cuidado!".Como qualquer rapariga de seis anos, ela gosta de desenhar, jogar basquetebol e brincar com as duas irmãs, Patrícia, de 13 anos, e Filipa, de um ano. Por cima da cama, tem pendurado um poster das fadas Winx e no quarto, que divide com a irmã mais velha, não faltam peluches coloridos. Este ano, vai entrar para a 1ª classe, na mesma escola onde concluiu a pré-primária, e já conhece quase todos os futuros colegas de turma. "Sou amiga de todos", diz, timidamente, depois de terminar o jogo de computador. Enquanto as aulas não começam, passa a maior parte do tempo em casa, com os pais, de férias, protegida dos 35 graus que se fazem sentir nas ruas de Évora. "Só saímos de manhã para ela passear um pouco. O exercício faz-lhe bem", conta Martinho Janeiro. É uma vida normal. Ou quase. "Os médicos disseram-nos que ela não terá limitações no dia-a-dia. Mas tem de ir às consultas de cardiologia, de três em três meses, para ser vigiada, de tomar remédios para a tensão e para o coração". Tem também uma cicatriz no peito, tapada pela T-shirt verde. Para os pais, tudo isso são pormenores. "A nossa filha está viva. É uma heroína".

Sem comentários: